A ausência do amor e o silêncio do ódio.
A arte de querer amar, mas ser rodeada pelo ódio.
“O amor é a expressão mais elevada da existência humana, e ao mesmo tempo o maior desafio.” — Søren Kierkegaard
Eu nunca fui alguém religiosa. Na verdade, sempre enxerguei a religião como aquelas histórias contadas ‘para boi dormir’. Para mim, era uma grande farsa — algo criado para que a humanidade temesse leis que, se fossem impostas apenas por homens, seriam simplesmente ignoradas. E, sendo bem honesta, mesmo agora, em meio a um processo de conversão, ainda carrego essa sensação.
O que me faz seguir, no entanto, não é uma súbita certeza. É a ausência. A falta de sentido, de direção, de algo que preencha o vazio que a lógica não consegue tocar. É curioso pensar que o que me aproxima da fé não é a convicção, mas a dúvida. Porque há um espaço em mim, na qual eu vejo crescer um sentimento — até então dado como desconhecido— silencioso, escuro, quase natural — como se o mundo estivesse cada vez mais confortável com ele.
Minha família, por ser muito religiosa, sempre frequentou as missas dominicais. Era quase um ritual imutável — o cheiro do incenso, o som do órgão, as mesmas leituras, os mesmos rostos. Eu, mesmo distante em espírito, sempre estive presente em corpo. E agora, por namorar alguém católico, continuo nesse ciclo, como quem caminha por uma estrada conhecida, mesmo sem saber exatamente aonde ela leva.
Foi em uma dessas missas, durante a homilia, que o padre disse algo que me atravessou de forma inesperada: “onde não há amor, há espaço para o ódio.” A frase ecoou em mim de um jeito estranho. Senti como se, por um instante, a igreja inteira tivesse se calado só para que aquelas palavras me alcançassem.
E em algum momento da minha vida — e não sei bem quando — alguém me disse que eu carregava muito ódio. Que eu tinha rancores enraizados, feridas que eu mesma alimentava sem perceber. E aquilo me marcou, embora eu nunca tivesse certeza se era verdade ou apenas uma leitura precipitada sobre alguém que sente tudo de forma intensa.
Mas ali, ouvindo o padre, uma pergunta começou a me corroer por dentro: e se for verdade? E se dentro de mim houver mais espaço para o ódio do que para o amor? E pior — como se livrar de algo que a gente nem sabe exatamente quando começou a carregar?
Na ausência do amor, o julgamento se torna mais fácil. A intolerância se disfarça de justiça. A frieza se veste de razão. E tudo isso vai nos afastando uns dos outros, como ilhas em constante erosão.
Porque o ódio, diferente do amor, não costuma anunciar sua chegada. Ele se instala aos poucos, em silêncios não explicados, em mágoas que pareciam pequenas, em injustiças que a gente varreu para debaixo do tapete. Ele se camufla em sarcasmo, se disfarça de autoproteção. E quando a gente vê, já está ali, ocupando os espaços vazios que o amor não conseguiu preencher.
Talvez eu não acredite nas histórias como estão escritas. Talvez eu questione cada metáfora, cada milagre. Mas o que começa a me convencer é o que nasce por trás disso — a tentativa, ainda que falha, de fazer o ser humano se lembrar de amar. Porque o amor, mesmo em sua forma mais frágil, é o que sustenta a ponte entre o caos e a convivência.
Talvez seja por isso que estou aqui, tentando acreditar. Não porque deixei de duvidar. Mas porque não quero deixar de amar.
Talvez por isso aquela frase me doeu tanto. Porque, no fundo, ela me expôs. Me lembrou que amar não é apenas sentir algo bom por alguém — é lutar contra tudo que nos endurece, é estar disposto a esvaziar-se do rancor, mesmo sem saber muito bem como fazer isso.
Desde então, essa frase tem voltado para mim em momentos aleatórios. Quando alguém me corta no meio de uma conversa. Quando uma lembrança amarga aparece sem ser convidada. Quando escuto certas palavras e já espero o pior, como se estivesse sempre em guarda, pronta para o embate. É nesses momentos que percebo o quanto o ódio pode ser silencioso — e o quanto ele se acomoda fácil dentro de nós, como se tivesse sido sempre parte da mobília.
Mas também comecei a perceber uma coisa nova: talvez o amor não precise ser essa força grandiosa e inquestionável que as pessoas costumam pregar. Talvez ele seja mais simples — e, justamente por isso, mais difícil de cultivar. Amor pode ser o esforço de escutar sem interromper. Pode ser escolher o silêncio ao invés da última palavra. Pode ser aceitar que nem toda dor precisa se tornar munição.
E nesse exercício, mesmo ainda desconfiando da fé, comecei a entender um pouco do que ela tenta ensinar. Não falo de dogmas, tampouco de promessas celestiais. Falo do que ela busca resgatar no humano: a capacidade de amar apesar da dor, de perdoar mesmo sem esquecer, de reconstruir onde só restava escombros.
Ainda não me converti no sentido pleno da palavra. Eu sigo com minhas dúvidas, minhas contradições, minhas perguntas sem resposta. Mas agora eu compreendo que talvez não seja preciso acreditar em tudo, desde que eu não me permita acreditar em nada. Porque onde não há amor, há espaço para o ódio — e o mundo já está cheio demais de gente vazia tentando se preencher com aquilo que só machuca.
Talvez minha conversão seja menos sobre aceitar uma doutrina e mais sobre aprender a amar o mundo de um jeito que não me destrua no processo.
E se for assim, então talvez eu esteja, aos poucos, me libertando.