O medo de dar errado, fazer errado, sentir errado - nós mulheres empregadas à filosofia do "𝙥𝙧𝙚𝙘𝙞𝙨𝙖 dar tudo certo."
Essa é para nós, mulheres, que nunca fomos apresentadas a arte de errar.
Desde cedo, somos ensinadas a acreditar que não podemos falhar. A falha, para alguns, é vista como algo deplorável — um erro do qual não se pode voltar, como se ela fosse definitiva, imutável.
Mas será que é assim mesmo?
Na língua portuguesa, a definição da palavra “falhar” é simples: não alcançar um objetivo ou não obter sucesso em uma determinada tarefa. Observe que não há nenhuma tragédia. Nenhuma sentença. Apenas uma experiência entre tantas.
Afinal, falhar não é o fim dos tempos — é apenas parte do caminho.
Já pararam para refletir sobre a cobrança silenciosa que tantas mulheres carregam? Ser boas profissionais, amigas, mães, filhas, companheiras, bonitas, competentes — tudo ao mesmo tempo. Esse “precisa dar certo” não é apenas uma meta que nos impusemos: é uma armadilha emocional cuidadosamente instalada em nossas mentes, desde cedo, como sinônimo de valor e aceitação.
Fomos ensinadas a acreditar que dar conta de tudo é o mínimo. Que falhar é fraqueza. Que descansar é preguiça. Que sentir demais é descontrole.
Mas por que essa exigência é tão mais pesada sobre nós?
A resposta está na misoginia — não só aquela explícita, visível, mas a estrutural, sutil, que se esconde nas entrelinhas do cotidiano.
Ela é o alicerce invisível que sustenta essa cobrança constante. É o sistema que transforma a mulher que erra em irresponsável, e o homem que erra em humano. Que transforma o nosso cansaço em culpa, e nossa vulnerabilidade em fracasso.
A misoginia opera no silêncio das expectativas: espera-se que sejamos perfeitas para provar que somos capazes. Espera-se que sejamos fortes, mas suaves. Assertivas, mas não arrogantes. Que façamos tudo certo — mesmo quando o mundo inteiro dá errado ao nosso redor. E em meio a tantos erros do mundo, por que justamente nós temos a obrigação de sermos perfeitas?
Isso não se trata apenas de pressão social ou de insegurança individual. Existe um sistema de pensamento por trás dessa exigência de perfeição — um projeto de controle. Desde a filosofia clássica até os discursos modernos sobre comportamento, o corpo feminino foi moldado para a performance: calmo, contido, eficiente, belo, obediente.
Michel Foucault falava sobre como o poder se exerce não apenas pela repressão, mas pelo controle dos corpos e dos gestos, pela criação de normas invisíveis. E é isso que acontece conosco: somos vigiadas, ainda que ninguém esteja olhando. Nos policiamos, nos revisamos, nos silenciamos.
Já Simone de Beauvoir escreveu que "não se nasce mulher, torna-se mulher" — e nessa construção social do que é ser mulher, está embutida a ideia de que não podemos errar, de que sempre devemos provar que somos dignas de ocupar os espaços que nos negaram por séculos.
Ser mulher, nessa lógica, é performar uma perfeição impossível. E o que não se encaixa nesse ideal é punido com culpa, vergonha, exclusão. Nós somos ensinadas a sorrir, mesmo exaustas.
Porque os homens não sentem a mesma pressão vinda da sociedade?
A pergunta é complexa, a resposta também. A verdade é que homens sentem pressões, mas não a mesma - não com o mesmo peso, nem nas mesmas áreas e muito menos com a mesma vigência social. A pressão sobre mulheres é diferente porque está entranhada em séculos de controle sobre nossos corpos, nossas falas, nossos desejos, nossas escolhas.
Enquanto nós somos ensinadas a base de:
“Seja comportada”
“Não grite”
“Você precisa ser educada, bonita, inteligente”
Os homens crescem de uma forma diferente, de uma forma livre.
“Seja corajoso”
“Ele é só um menino”
“Não chore”
Enxergam a diferença? Enquanto as meninas são ensinadas a não falhar, os meninos são incentivados a arriscar. E quem arrisca sabe que errar faz parte.
Talvez, para primeiro passo de libertação, devêssemos nos pegar nisso: errar faz parte. Reconhecer que o medo de falhar não é fraqueza, é sintoma. Sintoma de uma estrutura que nos ensinou a medir nosso valor pela nossa capacidade de agradar, de dar conta, de silenciar dores em nome de uma perfeição que nunca foi nossa.
Mas e se começássemos a falhar de propósito? A descansar sem culpa, a dizer não sem justificativa, a sentir sem medo de ser chamada de exagerada?
E se nossa liberdade começasse justamente naquilo que a sociedade chama de erro?
Subverter esse “precisa dar tudo certo” não é desistir de nós mesmas — é, talvez, a forma mais radical de nos encontrarmos.
Porque tudo dá certo, o tempo todo, nunca foi sobre felicidade. Foi sobre controle. E sair desse roteiro é o início de uma nova narrativa.
Uma onde errar é viver. E viver, sendo mulher, é já uma revolução.
Ao mesmo tempo que eu fui lendo, concordei e aprendi com cada palavra. Não consegui deixar de lembrar daquele dilema onde as mulheres passam em faculdades, consquistam sua casa própria, tiram 10 em um concurso e ainda sim, é só mais um item da lista riscado, nunca uma comemoração pela conquista.
Espero que eu saiba lembrar disso quando a culpa bater por não terminar o dia com uma super nova vitória. Artigo maravilhoso ❤️
como alguém que antes sentia medo de começar algo pelo receio de saber que não seria imediatamente boa, esse texto bateu forte.